quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Henfil, 70 anos

Se estivesse vivo, o cartunista Henrique de Souza Filho, o Henfil, faria 70 anos. Hemofílico como os irmãos, o sociólogo Herbert de Souza (Betinho) e Chico Mário, viveu numa época onde o controle da qualidade do sangue era precário e por isso contraiu a AIDS, que lhe tirou a vida em janeiro de 1988. 

Até agora não apareceu um cartunista como ele. Pensando bem, as circunstâncias atuais não permitem: estamos na época do 'politicamente correto', o que engessaria um trabalho de quem seguisse os passos do criador dos Fradins, tal como a ditadura militar, que Henfil conhecia muito bem. 

O Baixim deixava o Cumprido de cabelo em pé

Isto agora seria acusado de discriminação contra o índio

Outros personagens mantinham a crítica social, como a Graúna, simpática passarinha de traços marcantemente simples e que vivia faminta, e seus amigos Zeferino, o típico nordestino, e o bode Orellana, devorador - literalmente - de jornais. 


E ainda havia o paranóico Ubaldo, que tinha pânico dos militares e tremia só de pensar em ser levado pelos órgãos de repressão...


... e o Cabôco Mamodô, que enterrava em vida todos os acusados por Henfil de colaborarem com o regime. Nem a Elis Regina escapou. 


Depois, Henfil se arrependeu de tè-la enterrado junto com Pelé, Tarcísio e Glória, Roberto Carlos e Marília Pera, também acusados de 'lamberem as botas' dos militares, na sua oposição radical (até demais) à ditadura. Elis retribuiu cantando O Bêbado e a Equilibrista, de Aldir Blanc e João Bosco, cuja letra falava sobre a volta do "irmão do Henfil" (Betinho, exilado no Canadá e depois no México), e os dois voltaram à paz. 

Henfil também teve de sair do país, mas alegou motivos mais banais - um tratamento contra a sua hemofilia - para ir aos Estados Unidos. Lá ele fez uma versão dos Fradins, chamada de 'Mad Monks'. Isso foi narrado em seu livro Diário de um Cucaracha, onde ele falava sobre a estadia por lá, principalmente em Nova York, entre 1972 e 1975. Ele admirava a organização dos EUA, a tecnologia da época e coisas mais prosaicas como a ausência de água no leite, mas logo tratou de avacalhar com o 'american way of life', usando a sua ótica socialista contra a nação capitalista. Contribuiu para isso a recusa dos americanos em aceitar o seu humor considerado muito ofensivo, chamando os 'Mad Monks' de sicks (doentes), e também sobre a dificuldade de ser bem atendido no sistema de saúde local. Ele próprio foi apelidado de 'brazilian nut' (no sentido literal, é castanha-do-pará, mas também significaria algo como 'doido brasileiro'). 

Depois, ele foi para a China, em 1977, e se admirou com a organização de um país que acabava de sair da terrível Revolução Cultural, organizada por Mao Zedong e depois pelo 'Bando dos Quatro' (os radicais chefiados pela viúva de Mao, considerada o 'cão de guarda' do marido). Não faltaram críticas ao patrulhamento oficial por meio da propaganda, principalmente contra os jornalistas e cartunistas, mas também a todo o resto do povo (então formado por 900 milhões, uma quantidade assombrosa de gente naquela época). Ainda assim, sobravam elogios a um país que 'caminhava com os próprios pés' - usando um termo usado por Mao - e estava já naquela época caminhando a passos largos para deixar de ser um país pobre. Henfil ficou por lá pouco tempo, visitando apenas as maiores cidades chinesas: Pequim, Xangai e Guangzhou (Cantão). A sua viagem ao gigante comunista foi narrada em Henfil na China

Outros livros foram escritos, como o pioneiro Hiroshima Meu Humor (1966), Diretas Já (1984) e Como se faz humor político (1984). 

Henfil, já 'ferrado' pela AIDS, teve forças até para fazer um filme. Satírico, como de costume. Foi Tanga - Deu no New York Times, sobre uma republiqueta latino-americana comandada por um ditador que lia o famoso jornal de Nova York e não permitia que mais ninguém lesse, muito menos os grupos oposicionistas 'de um só integrante'. 

Ele morreu sem ver o Brasil recobrar inteiramente a democracia, que continua apesar dos desmandos do PT, partido que ajudou a fundar e colocado no poder em 2003, junto com Lula. Se Henfil ainda estivesse vivo, talvez teria motivos de sobra para malhar seus companheiros, isto é, caso não receber uma polpuda indenização que até o bem mais comportado Ziraldo recebeu por ter sofrido durante a ditadura - como se outros milhões de brasileiros não tivessem se submetido também a essa amarga experiência. 

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