terça-feira, 25 de maio de 2021

Da série 'Filósofos estudam o Brasil', parte 3

Aristóteles nasceu em Estágira, antiga cidade cujas ruínas estão situadas ao norte da atual Grécia, em 384 a.C., e passou a maior parte de sua vida em Atenas (Divulgação)



Creio que muitos de vós, ó brasileiros, ouvistes falar em meu nome, Aristóteles de Estágira. Fui convidado a expor minhas impressões acerca de vosso país, mas temo não poder colaborar o suficiente, pois estou há muito pouco tempo neste lugar, em uma época muito diferente e costumes para mim estranhos. Não tenho o pudor de confessar isso, mesmo sendo versado não só na arte da política, mas também na lógica e na ciência. 

Serei o mais sucinto e didático possível, embora acostumado à eloquência na minha época. Houve tempo de constatar a pouca paciência desta época para ler e escrever textos longos. Perdoai a minha franqueza, mas vossos textos são comparáveis aos de uma criança de 11 anos orientada por um escravo negligente no lugar de um tutor, se estivésseis na antiga Atenas (*). 

Primeiro, sobre a política, reitero a natureza do homem como um zoon politikon (**). integrante e participante de uma sociedade. Como tal, deseja atuar ativamente na manutenção da paz e da ordem dentro de seu meio. Uns possuem o talento para a liderança, outros para a obediência, e isto não mudou ao longo do tempo, pelo que constatei. Atenas não foi uma democracia, como vós, equivocadamente, pensais, pois apenas os homens livres se reuniam periodicamente para tomar decisões, enquanto as mulheres cuidavam dos afazeres domésticos e os escravos se encarregavam de seus trabalhos (***). Considero este um regime de politeia (****), onde muitos possuem os direitos de participarem dos destinos da cidade, mas não todos. Aliás, a democracia, na concepção de minha época, era inviável, pois se todos tinham o poder, os desprovidos de aptidão para exercer esse poder delegavam-no a outros, os dimagogós (*****), que os conduziam. Isso quando não havia a carência de ordem, com rebeliões em toda a parte. Esta é a forma degenerada da politeia, que é a oclocracia (******), onde grupos tentam impor seus pontos de vista e se digladiam sem alguém para contê-los. Os mais instruídos de vós já devem ter ciência disso. Felizmente, ao longo dos séculos, o risco da oclocracia foi minorado com a elaboração de regimes constitucionais e a divisão de poderes cujos representantes são escolhidos pelas pessoas, o que vós chamais de democracia representativa, e conseguem funcionar bem mesmo em países enormes e complexos. Por outro lado, este modelo parece estar mal adaptado em vossa pátria, e há sempre o risco da ação de dimagogós, enganadores e populistas, interessados em se apossarem do poder e do dinheiro, e não no bem do país. 

Ainda sobre o tema, reafirmo meus conceitos sobre o justo meio. Não é aceitável a opressão e a imposição de regras ditatoriais, mas tampouco a ausência de leis e a libertinagem. Já sabeis bem as definições de um covarde e de um imprudente, por excesso ou falta de medo. Da mesma forma, qualquer falta ou qualquer excesso é um desequilíbrio na vida de uma pessoa. O bem estar individual depende do bem estar de uma cidade, e desta de uma nação. E os governantes, tomadores de decisão, devem assegurar isso. 

Porém, vós estais em tempos de peste, e aí entra a ciência. Sabeis que é preciso tomar medidas sanitárias, para minorar os efeitos. Vós desenvolvestes mecanismos para a profilaxia e o tratamento de diversas doenças, e isso graças aos métodos científicos desenvolvidos a partir das minhas ideias, sem falta modéstia. Criastes os remédios e as vacinas, agora deveis utilizar tais recursos, para debelar a peste e fazer cada cidade voltar ao normal, com a recuperação plena das liberdades. Mas, por ser a peste muito contagiosa e transmissível pelo ar, precisareis evitar o contato direto e usar os meios de defesa contra ela, o que vós chamais de máscaras, que deixam passar o ar mas não os estranhos seres invisíveis causadores dessa doença mortal. Todo o esforço deve ser feito para as epidemias, que não duram para sempre, como pude constatar em vida, serem derrotadas. Isto deduzo que deve valer para esta estranha praga. 

Entretanto, não cabe a mim ditar agora o que vós devereis fazer para resolver este e outros problemas, justamente causados pela ausência do justo meio entre governantes e governados. Pelos relatos sobre o passado deste gigantesco país, predomina um estranho amálgama entre o excesso de repressão e a omissão que leva à preguiça e à inobservância das leis. Outros países conseguiram algo mais próximo ao justo meio, e agora são nações prósperas, graças à prática na moderação dos costumes, valorização do conhecimento e obediência às leis, e isso, como tudo na vida, requer certo tempo. E ireis descobrir que não é só considerar uma terceira via moderada entre duas facções políticas, chamadas na vossa época de "esquerda" ou "direita". Isso eu confesso que precisaria de mais tempo para compreendê-las com exatidão. 


(*) Na antiga Grécia, a educação dos mais abastados era feita por meio de tutores, comparáveis aos atuais professores particulares

(**) animal político

(***) Não havia na antiga Grécia, e nem em outras civilizações contemporâneas desta, a noção moderna de igualdade de gêneros, enquanto a escravidão era considerada como normal. 

(****) Administração de uma cidade-estado feita por decisão dos cidadãos considerados aptos, excluindo mulheres, escravos e estrangeiros. 

(*****) Demagogos, ou os condutores do povo. 

(******) De chlos, multidão, turba. 

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