quarta-feira, 24 de agosto de 2022

O que teria a ver a Escola Naval com a noite de São Bartolomeu

A Escola Naval do Rio de Janeiro, uma das mais tradicionais instituições de ensino superior do Brasil, é também uma das mais antigas. Era a Academia Real dos Guardas-Marinhas, fundada em 1782 por ordem da rainha de Portugal D. Maria I em Lisboa, depois transferida para o Rio de Janeiro com a vinda da família real portuguesa em 1808, recebendo o nome atual em 1887. Em 1938, foi transferida para a ilha de Villegagnon, próxima ao Aeroporto Santos Dumont, onde estava o antigo Forte Coligny. 

Esse forte foi construído pelos invasores franceses, comandados por Nicolas Durand de Villegagnon (1510-1571), vice-almirante que seguia ordens do prestigiado almirante Gaspard de Coligny (1519-1572), como parte da "França Antártica". Na época, a ilha era chamada de Sirijipe (lugar dos siris, em tupi). 

A Escola Naval, na ilha de Villegagnon, Rio de Janeiro (Divulgação)

Coligny, durante a instalação dos franceses no Rio de Janeiro, foi capturado e preso pelos espanhóis, entre 1557 e 1559, convertendo-se ao calvinismo. Libertado do cárcere, tornou-se o mais destacado dos chefes huguenotes, chamados assim porque eram partidários de Hugo Capeto, da casa dos Bourbons, e a maioria deles seguia o culto calvinista. 

As lutas religiosas entre a maioria católica e os huguenotes enfraqueceram a unidade francesa, e isso refletiu na "França Antártica". Os franceses não conseguiram se estabelecer plenamente, mesmo com o apoio dos índios tupinambás, cansados da perseguição movida pelos portugueses. Em 1560, os portugueses, comandados por Estácio de Sá (1520-1568) com o apoio do cacique Araribóia (c. 1525-1589), inimigo dos tupinambás (também chamados de tamoios), tomaram o Forte Coligny. 

Quanto ao almirante que batizou o nome do forte, ele passou a ter grande influência no reino. Carlos IX (1550-1574), o rei, era jovem e fraco de espírito, manipulado tanto pela mãe, a poderosa Catarina de Medicis (1519-1589), quanto pelos nobres, que chefiavam os grupos católicos e protestantes. Coligny era temido por seu poder, costurando alianças com a Inglaterra e a Holanda, em manobras desconhecidas até pela rainha Catarina. 

Os chefes católicos, instigados por Henrique de Guise (1550-1588), herdeiro político do duque de Guise (1519-1563), cujo assassinato teria sido a mando de Coligny, tentaram matá-lo a tiros no dia 22 de agosto de 1572, na época do casamento entre a irmã do rei, a católica Margarida de Valois (1553-1615) e o jovem nobre huguenote Henrique de Bourbon (1553-1610), então soberano do antigo reino ibérico de Navarra. Coligny sobreviveu, mas estava bastante ferido nos dois braços, e os mandantes do crime, temerosos por uma vingança dos protestantes, resolveram antecipar-se, ordenando a morte de vários líderes inimigos, e convencendo o rei Carlos IX a apoiá-los. 

O almirante, convalescendo das feridas em seu castelo, foi surpreendido em seu leito e esfaqueado por um partidário de Henrique de Guise. Seu corpo foi defenestrado, depois emasculado e decapitado. Isso e mais a perseguição aos líderes huguenotes despertou um verdadeiro frenesi em Paris, a "Noite de São Bartolomeu", em homenagem ao apóstolo de Jesus vítima, também, de uma morte terrível (ele foi esfolado vivo, segundo a tradição católica), e sua data é comemorada no dia 24 de agosto. 

Mataram tantos calvinistas, homens, mulheres e crianças, a ponto de manchar Paris com o sangue deles, inclusive o rio Sena, tingido de vermelho quando ele recebeu mais de mil cadáveres. No total, estima-se em cerca de 3.000 mortos apenas na capital francesa, enquanto em outras cidades também houve massacres entre agosto e outubro, totalizando dezenas de milhares de cadáveres (entre 10.000 e 30.000, não se sabe ao certo). Henrique de Bourbon foi um dos poucos calvinistas a escapar, e mais tarde viria a ser o rei Henrique IV, e sua esposa, da qual iria separar-se (por anulação do matrimônio), seria conhecida como "a rainha Margot". 

Tentaram trazer a cabeça do almirante Coligny para o papa, Gregório XIII (1502-1585), na esperança de conseguir o apoio do Vaticano à causa contra os "hereges". O resto mortal não cruzou as fronteiras da França. Mesmo assim, o papa encomendou um afresco a Giorgio Vasari (1511-1574), para enfeitar a sala régia do Vaticano. Nesta obra, foi representado o corpo morto de Coligny sendo jogado pela janela de seu aposento enquanto os católicos "cuidavam" dos "inimigos do papa". Foi rezado um Te Deum, como forma de louvar o rei da França e a rainha-mãe. Carlos IX mandou cunhar uma medalha comemorativa onde ele era representado como Hércules combatendo a hidra (os huguenotes). (*)

Afresco de Vasari relembrando os acontecimentos da noite de São Bartolomeu, ocorrida há exatos 450 anos (Giorgio Vasari/Domínio Público)

Assim foi o horrendo acontecimento que completa hoje 450 anos, movido pelo extremismo político (que era visto como normal na época) e pela intolerância religiosa. 

No outro lado do Atlântico, a "França Antártica" já havia perecido faz tempo, em circunstâncias bem menos dramáticas. Os franceses tentaram resistir, mas estavam divididos entre as facções católica e huguenote, e as forças de Estácio de Sá e de Araribóia conseguiram derrotá-los. Villegagnon já havia entregado o comando antes da queda do forte Coligny, pressionado pelos calvinistas, que o acusam de atrocidades contra eles. Em 1565, Estácio de Sá fundou a cidade do Rio de Janeiro, mas dois anos depois morreu em confronto com os tamoios, quando os últimos franceses foram expulsos. Mais tarde, o cacique recebeu terras no outro lado da baía de Guanabara, e sua tribo, os temiminós, fundaram uma vila, São Lourenço dos Índios, a futura cidade de Niterói. Novas invasões francesas viriam a ocorrer, no século XVII, no Maranhão (forte de São Luís, em homenagem a Luís XIII, filho do já citado Henrique IV). 

Quanto ao forte Coligny, suas ruínas deram lugar às instalações da fortaleza de São Francisco Xavier no século XVIII, aproveitada depois para abrigar a Escola Naval, responsável pela formação de vários oficiais da Marinha brasileira. 



(*) N. do A.: Os conflitos religiosos perduraram após os massacres de 1572. Após a morte precoce de Carlos IX, seu irmão Henrique III, mal visto por ser homossexual, porém bem mais firme no comando do reino, tentou se desvencilhar da influência dos chefes das duas facções em confronto, chegou a mandar matar vários deles (inclusive Henrique de Guise) e acabou sendo assassinado por um católico extremista em agosto de 1589. Catarina de Medicis perdeu influência e saúde no reinado de Henrique III, morrendo poucos meses antes do assassinato do filho. Henrique de Bourbon foi escolhido para sucedê-lo, tornou-se o rei Henrique IV, conseguiu pacificar o país com o Edito de Nantes (1598), garantindo liberdade de culto. Porém, também foi assassinado por outro fanático católico, em 1610. A paz entre católicos e calvinistas sempre foi precária, mas foi defendida por Luís XIII (e seu primeiro-ministro, o cardeal Richelieu). Seu filho e sucessor Luís XIV, o "Rei-Sol", terminou de submeter os nobres à autoridade real, mas já não tinha a mesma tolerância em relação aos huguenotes. Em 1685, vários deles, perseguidos pelo rei, fugiram do país e foram para a Inglaterra, a Prússia e outros países de religião protestante. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário